Carrego na boca um papel e um lápis

A primeira proposta de exercício do curso foi: escolher uma página de um dos seus contos ou romances preferidos, transcrevê-la, vivê-la, reescrevê-la a partir do vivido. Leia abaixo uma dessas reescritas, realizada a partir de um trecho do ensaio "A vida e o romancista", de Virginia Woolf.


ERBER, Laura. O livro das silhuetas. Vídeo-instalação, 2004.

São 2h15 da madrugada de um sábado.

Com minha caixinha de fósforos nas mãos, risco palitos de faíscas palavras.

Elas mal se completam no ar.

Palavras frouxas.

Esvaem-se.

Antes de.

São 2h15 da madrugada de um sábado. Fecho os olhos. Escuto frases fogo logo ali, sei suas nascentes. Risco fósforo. Se vão. As palavras.

Minha gata sabe esconder-se. Descobriu que entre o armário branco e a parede branca, onde entulham fotos, caixas de sapatos, passadeiras sem uso, o menino jesus na manjedoura enrolado na folha de são paulo, que bem ali é o lugar mais escuro e silencioso da casa. No nosso quarto todo meu, engatinho. Engatinho para trás do armário branco, carrego na boca um papel e um lápis. Silêncio.


Quem não está inscrito no curso, mas quer embarcar na proposta e compor o coletivo de criação, basta acompanhar as postagens do blog e do Instagram (@roteirosminimos) e fazer os exercícios propostos, enviando-nos para publicação.

Ela diante do deserto das águas

A primeira proposta de exercício do curso foi: escolher uma página de um dos seus contos ou romances preferidos, transcrevê-la, vivê-la, reescrevê-la a partir do vivido. Leia abaixo uma dessas reescritas, realizada a partir de um trecho do livro As ondas, de Virginia Woolf.


VAREJÃO, Adriana. Canibal e Nostalgia, 1998.

No restaurante peço um vinho e aguardo ela chegar (... ela diante do deserto das águas). Ela que não sei ao certo quem é, ela para qual tenho palavras quase prontas. Ela que é você e que agora bebe comigo. Diante do deserto digo apenas: água. Ela me olha e pergunta: mágoa? Sussurro: mágica. Levanto a taça e proponho um brinde, olho através do cálice e ouço o som do mundo desmoronando.


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Um mar em seus olhos

A primeira proposta de exercício do curso foi: escolher uma página de um dos seus contos ou romances preferidos, transcrevê-la, vivê-la, reescrevê-la a partir do vivido. Leia abaixo uma dessas reescritas, realizada a partir do conto "As águas do mundo", de Clarice Lispector.


ANDUJAR, Claudia. Sem título – da série Sonhos Yanomami, 1974.

Um mar em seus olhos. O que há depois da linha do horizonte? E nas profundezas do olhar que esconde mistérios?

Desejos de liberdade, de desbravar o mais profundo de si. Um mergulho nas águas que constituem seu corpo – e o mar. Ora mansas, ora alucinadamente revoltas.

Nos lábios sente o gosto de sal da maré vazante – dos olhos embaçados.

Engendrada em enigmas. Respeita, desvela-se. Não teme mais a imensidão em si.


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Alívio é poder ser salva, mais uma vez, pelo ato gratuito

A primeira proposta de exercício do curso foi: escolher uma página de um dos seus contos ou romances preferidos, transcrevê-la, vivê-la, reescrevê-la a partir do vivido. Leia abaixo uma dessas reescritas, realizada a partir do conto "Ato gratuito", de Clarice Lispector.


Dizem que, para qualquer enfermidade, do corpo ou da alma, o repouso é o melhor remédio. Contudo, quando o mal é o cansaço da luta, angústia que não se acredita poder curar, penso que o melhor combate se dá pelo movimento. Foi assim que, apesar dos planos, me rebelei contra as tarefas e montei na bicicleta sem saber ao certo onde minhas pernas iriam me levar. Apesar do mar não estar para peixes como eu, que têm medo de se afogar, não resisti em buscar a praia. Com o sol acariciando o corpo e o vento refrescando o espírito, atravessei os bairros que nos separam ao longo de suados quarenta minutos no pedal. Era disso, era disso que eu precisava. Não fossem as rajadas de areia que quase me fizeram levitar, teria me derramado por mais tempo. A cadência ritmada das ondas, apesar de furiosas, recuperaram a suavidade da minha respiração. O deslocamento apressado e sufocado para o futuro foi suspendido pelo contato com o agora. Sentindo a eternidade tocar meus pés, coxas, nádegas e mãos, compreendi, enfim, não haver razão para perder a calma. Estou de novo comigo. Suspiro profundamente e mexo a cabeça, estalando o pescoço. Alívio é poder ser salva, mais uma vez, pelo ato gratuito. Aquele que manifesta fora de mim o que secretamente eu sou e pelo qual não preciso pagar o alto preço que custa viver.


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A arte de viver a vida cotidiana

Diretrizes para o segundo exercício


TOSANI, Patrick. Cuillères. Vue d’exposition, Museum Folkwang, Essen, 1997.

Escolha um objeto cotidiano e doméstico, daqueles que estão presentes em todas as casas e que usamos todos os dias (uma colher, uma cadeira, uma porta etc.). Escreva uma instrução sobre como usá-lo. Você pode instruir sobre o seu modo de usar corriqueiro ou inventar novos usos para ele. Se escolher por sua utilidade mais usual, não deixe de ser minucioso e detalhista em suas instruções. Você deve imaginar que seu interlocutor não conhece o objeto e nem sabe como usá-lo. Provavelmente ele conhece e sabe. Mas lembre-se de que vivemos nossa vida cotidiana de modo tão automático que não prestamos atenção aos nossos mais repetidos gestos. Sua intenção será arrancar o leitor do hábito, da visão acostumada das coisas. Ao escrever sua instrução, você se servirá das marcas linguísticas de sequências textuais injuntivas (como esta aqui): verbos no imperativo (escolha, escreva, deixe, lembre-se), verbos modais (pode, deve), verbos no futuro do presente (será, servirá), uso da segunda pessoa (você), expressões de hipótese (se, provavelmente, tomara). Tomara que seu leitor desfrute das instruções e mergulhe no delicioso espaço do infraordinário.

* “Os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana” é uma expressão retirada do texto “A complicada arte de ver“, de Rubem Alves. Aliás, recomendamos a leitura!


Se quiser participar dessa proposta, envie-nos suas instruções
(respeitar o limite de 15 linhas ou 1300 caracteres, contando espaços).

Amor Amém

A primeira proposta de exercício do curso foi: escolher uma página de um dos seus contos ou romances preferidos, transcrevê-la, vivê-la, reescrevê-la a partir do vivido. Leia abaixo uma dessas reescritas, realizada a partir de um trecho do conto “Kadosh”, de Hilda Hilst.


MIGUELOTE, Carla. 99 vezes amor em 9 cores, 2021.

“[U]ma noite eu lia sobre as estruturas políticas, o corno das ditaduras no ventre dos humildes, a anatomia intrincada dos homens do Poder e pensei que uma palavra devia chegar aos homens, que era inútil ficar olhando para cima e para baixo te buscando e então sentei-me e escrevi durante dez noites a palavra amor, cem mil páginas, cem mil, coloquei o calhamaço num caixote com rodinhas, postei-me numa esquina e a todo aquele que passava eu entregava uma folha e dizia Amor Amém.”

HILST, Hilda. Kadosh. São Paulo: Globo, 2002.

Um dia acordou, respirou fundo sob a luz do sol que atravessava a janela, e se sentiu autorizada. Cansada de todos os ódios, escolheu nove cores, e com cada uma delas escreveu noventa e nove vezes a palavra amor (nove vezes por linha, onze linhas). Fotografou as nove páginas de amor amor amor amor amor amor amor amor amor. Postou as nove fotos no Instagram e no Facebook. E as enviou para todos os contatos do Whatsapp, incluindo os grupos da família, dos colegas de trabalho, das amigas sapas, das amigas hétero, das feministes, dos moradores da rua Francisco Eller para organização dos encanamentos de água, do clube de leitura, da capoeira, da mobilização política. Mandava as fotos e escrevia: amor amém. Recebeu de volta, entre muitos silêncios, algumas respostas curiosas: pra mim? que delícia – foi engano? – nova criação? – ficou de castigo na escola? – poema novo? – você que escreveu? – arrumou um amor e por isso amém? – clonaram seu celular? – posso mandar para outras pessoas? – hum? – não entendi – não sei se era pra mim mesmo, mas gostei – que não nos falte, nunca – que lindo!!! – amor amém sempre e todo dia! – o grupo é só para avisos urgentes e divulgação de coisas concretas – que coisa linda receber isso nessa terça corrida!


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Que livros te dão esperança?

“[O] desejo amoroso se dispersa entre vários sujeitos, permitindo que cada um tenha a sua chance, pois se estivéssemos todos apaixonados pelo mesmo ser, que suplício – para nós e para ele! O mesmo ocorre com os livros e os fragmentos de livro: há uma Disseminação do Desejo, e é nesta medida que há apelo e chance de procriação de outros livros: meu desejo de escrever vem, não da leitura em si, mas de leituras particulares, tópicas: a Tópica do meu Desejo – como num encontro amoroso: o que define o Encontro? A Esperança. Do encontro com alguns livros, nasce a Esperança de Escrever”.

BARTHES, Roland. A preparação do romance II. Trad. Leyla Perrone-Moisés.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Na performance Ir y volver (2019), a artista Marilá Dardot escreve com água, em um muro, o verso “A la esperanza vuelvo”, da poeta cubana Carilda Oliver Labra. Quando termina de escrever a última letra, as primeiras já se apagaram e é preciso reescrever novamente o verso, voltar repetidas vezes à esperança.

Assim também fazemos com os livros que nos inspiram e que amamos. De vez em quando precisamos voltar a eles, como quem volta à esperança. Mas esperança no sentido proposto por Paulo Freire:

“É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”

Bora se juntar pra fazer (ler, escrever, viver) de outro modo?

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“são muito bonitos os romances, mas não precisamos respeitá-los à risca”

Umas das inspirações para o nosso curso é o trabalho da artista francesa Sophie Calle, que experimentou dar o salto da literatura para a vida, ao executar trabalhos artísticos descritos no romance Leviatã (1992), de Paul Auster. No livro, os trabalhos são atribuídos a Maria Turner, personagem fictícia que, por sua vez, fora inspirada em Sophie Calle.

Para entender melhor o jogo entre o escritor e a artista, leia abaixo trechos do artigo “Porque ninguém pediu: escrita e invenção de protocolos de experiência”, da professora Carla Miguelote.

No início do livro, Auster agradece à Sophie Calle por ter lhe permitido misturar realidade e ficção. No romance, são relatadas sete obras de Maria Turner que coincidem com obras de Sophie Calle. Mas são descritas também outras duas, que a artista jamais realizara até então. Até então. Pois, ao ler o livro de Auster, Sophie Calle decide pôr em prática as obras imaginadas por ele.

O jogo entre a artista e o escritor se desdobra no projeto Doubles jeux, um conjunto de sete livros, nos quais as interferências mútuas se mostram em três projetos distintos. O primeiro livro, intitulado De l’obéissance, atende ao projeto “A vida de Maria e como ela influenciou a de Sophie”. Nesse projeto, Sophie Calle realiza as duas obras apócrifas de Maria: Dieta cromática e Dias sob o signo de B, C & W. O narrador de Leviatã conta que, durante algumas semanas, Maria se entregava a um regime cromático, restringindo-se “a alimentos de uma só cor em dias determinados. Segunda, cor laranja: cenoura, melão, camarão cozido. Terça, vermelho: tomate, caqui, quibe cru. Quarta, branco: linguado, batata, queijo cottage” (Auster, 2001, p. 83). Interessante observar que, embora o livro de Sophie Calle se intitule Da obediência, a artista não segue fielmente a dieta, desobedecendo ao script. Como Auster não havia mencionado bebidas, ela acrescenta esse item ao menu: suco de laranja para o dia do laranja, vinho para o dia do vermelho e leite para o dia do branco, por exemplo. Além disso, não satisfeita com a cor amarelada das batatas, permite-se trocá-las por arroz no dia da cor branca. Calle ainda estabelece cores para sexta e sábado, dias para os quais Auster não dera instruções. E, enfim, renuncia ao sétimo dia da dieta: “São muito bonitos os romances, mas não precisamos respeitá-los à risca”, explica a artista (Calle apud Macel, 2003, p. 35).

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Escrever a leitura, viver a leitura: o salto da literatura para a vida

Diretrizes para o primeiro exercício

KLEIN, Yves. Le Saut dans le vide. Action artistique, 1960.

Transcreva, palavra por palavra, a página de um dos seus contos ou romances preferidos [Lembre-se do que diz Benjamin sobre a diferença entre sobrevoar e caminhar: sobrevoar é ler; caminhar é transcrever]. Transcrever o texto já é vivê-lo de algum modo, mas você quer vivê-lo mais intensamente, embora sutilmente [Lembre-se do que diz Nietzsche sobre as feridas sutis]. Você vai viver a narrativa dessa página. Se a situação narrada implicar algum risco físico à personagem, escolha outra página, outro conto, outro romance. Se for possível viver a narrativa sem nenhum risco à sua integridade física, siga em frente. E faça as adaptações necessárias. [Lembre-se do que diz Sophie Calle sobre os romances: são muito bonitos, mas não precisamos segui-los à risca]. Se precisar interagir com alguém, não se acanhe, não tenha medo de ser chamada de louca [sabemos que você só está fazendo uma experimentação da arte com a vida]. Se houver algum diálogo, lance uma frase do nada para alguém, e anote o que esse alguém responder. Vá improvisando do seu jeito, o diálogo e o que mais lhe aprouver. Escreva um novo texto, contando como você viveu essa página. 

Se quiser participar dessa proposta, envie-nos a transcrição da página original e a página reescrita após a vivência (para esse texto, respeitar o limite de 15 linhas ou 1300 caracteres, contando espaços).

“assim é também a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve”

GUIMARÃES, Cao. Plano de Voo Series, 2015.

O primeiro exercício do curso começa pela transcrição de uma página do seu conto ou romance preferido (depois dessa etapa, seguem-se outras instruções). A ideia de começar pela transcrição, palavra por palavra, de um texto, nos vem da seguinte passagem de Walter Benjamin.

“A força da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve. Quem voa vê apenas como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio e de como, daquela mesma região que, para o que voa, é apenas a planície desenrolada, ela faz sair, a seu comando, a cada uma de suas voltas, distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz sair soldados de uma fila. Assim comanda unicamente o texto copiado a alma daquele que está ocupado com ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novas perspectivas de seu interior, tais como as abre o texto, essa estrada através da floresta virgem interior que sempre volta a adensar-se: porque o leitor obedece ao movimento de seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o copiador o faz ser comandado.”

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II: Rua de Mão Única.
São Paulo, Brasiliense, 1987.

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